I. PRELÚDIO: COLEÇÃO DE QUESTÕES (IM)PERTINENTES
Filósofo: aquela criatura que, para cada resposta que lhe fornecem, formula dez novas perguntas! Perguntemos sem temor, pois! Já que o perigoso, de fato, não é perguntar demais, mas sim a vida acéfala e irrefletida – e que não vale a pena ser vivida.
Correr o risco do questionamento crítico pode ser perigoso, mas nada questionar é mais perigoso ainda! Talvez aquilo de que o mundo precise com urgência, mais do que de dogmas e catecismos, seja de uma uma avalanche de perguntas que coloquem as certezas instituídas em maus lençóis.
Dentre as interrogações cruciais, eu elencaria esta: deveremos considerar como normal e banal o nosso sistema de produção alimentar tão vastamente calcado no carnivorismo? Em termos mais simples: devemos comer animais, e investir nosso dinheiro em engrenagens que “produzem” carne?
É uma maravilha do sistema produtivo capitalista globalizado que por agora nos rege que, em um único país (os EUA), nada menos que 10.000.000.000 (dez bilhões) de animais sejam abatidos para serem comidos todos os anos? Podemos dormir de consciência tranquila quando os magnatas da indústria-da-carne nos garantem que praticam “métodos humanos de abate” destas 10 bilhões de criaturas que morrem a cada translação da terra ao redor do Sol somente nos Estados Unidos?
Não vale pôr em questão também a noção, bastante difundida, de que o “abate” é plenamente justificável quando se dá de modo quase instantâneo e não envolve a “agonia” lenta de uma morte torturante?
Abate: nome que se dá à imposição, por parte de um animal humano, de uma morte praticada em escala industrial contra viventes de outra espécie, dentro da lei e com sacramentados fins comerciais. Auschwitz começa (e recomeça), segundo Adorno, toda vez que alguém olha para um matadouro e pensa: “eles não passam de animais!”
Alguns podem argumentar: ora, mas não dura o abate apenas alguns míseros minutos? O carnívoro, palitando os restos de frango entre seus dentes, pode até tranquilizar-se contando-se a fábula de que o bichinho foi “bem-tratado”, que alguns instantes de pânico tenebrosamente dolorosos e dores físicas muito além dos limites do suportável são procedimentos aceitáveis, ou melhor, são preços justos a se pagar por um bom bife, por um farto churrasco! Pensariam assim se tivessem que matar a própria janta?
Diante da minimização do que ocorre nos “abatedouros”, será que deveríamos levar em consideração também tudo o que precedeu o abate? Não conta também a vida toda que levou o animal? Uma das questões cruciais a se colocar não seria esta: como passam todos os seus dias, do berço à tumba (from birth to bacon, como eu gosto de dizer), os animais presos na engrenagem humana da pecuária industrializada? Não é verídico que nascem prisioneiros, subsistem no cárcere super-lotado e imundo, são injetados com antibióticos, engordados à fórceps, tudo para acabar como commodities em um supermercado?
É justo que perguntemos, sem medo do olhar carruncudo daqueles que abominam qualquer reflexão ética: cadê a Justiça neste processo? De Percy Shelley a Peter Singer, de Bernard Shaw a Franz Kafka, inúmeros foram aqueles que puseram em questão o problema moral envolvido no império, no domínio, no abuso de poder que impomos e perpetramos aos viventes não-humanos.
A pergunta que não se coloca é esta: a ética diz respeito apenas à relação entre os humanos, ou deve incluir a relação destes com os outros animais? Não temos nenhum tipo de preocupação ética a honrar em nossas relações com aquilo que transcende o humano e integra a Vida com V maiúsculo?
Suspeito que haja uma neurose de massa hoje servindo de ideologia oficial e que seria batizável talvez como “negação da animalidade” (para dialogar com a obra-prima de Ernest Becker, A Negação da Morte). Uma condição psicológica que faz com que os humanos, querendo inflar seu próprio ego e gozar com fantasias narcísicas delusionais, queiram cortar seus laços com a animalidade, fingindo que não temos nada a ver com as “bestas desalmadas” que estas estão aí para serem usadas a nosso bel prazer. Afinal, um boi não é nada senão um bicho inventado por Deus para que os humanos o transformassem em churrasco, assim como um porco não passa de linguiça em potencial… Tá serto, Sr. Carnívoro, tá sertíçímo!
Não será preciso pôr em questão a fé que alguns nutrem em um direito de nascença, uma espécie de graça de Deus-Pai, que teria concedido aos humanos o privilégio de dominar com seu poderio o “resto” do mundo natural? É verdadeiro ou demencial o argumento “finalista” e antropocêntrico que pretende que Deus fez os porcos para que pudessem virar salsicha e bacon? O Todo-Poderoso pôs aqui as galinhas tendo em vista seu plano divino de que um dia KFCs e McDonald’s pudessem lucrar com a venda de sua junk food repleta de hambúrgueres e nuggets?
Não será uma doidice do pensamento considerar que as vacas foram feitas como máquinas fornecedoras de carne e de leite para os Humanos? E que agrada aos deuses que matem-se milhões de perus, todos os anos, para que possam ser devorados no feriado de Ação-De-Graças? Não ocorreu a ninguém consultar quais seriam a opiniões que tem os perus sobre o Thanksgiving Day? Suponho que perus não consideram nada “sagrado” o procedimento de serem as vítimas de um genocídio periódico, sacrificados por humanos que estão dizendo “obrigado” a deuses que eles, humanos delirantes, imaginam como divindades famintas por carne sacrificada…
Sem falar nos mares e oceanos: são nossos para fazer o que quisermos, inclusive arrancar toda a “peixarada” com nossos empreendimentos colossais de pesca, indiferentes ao colapso de biodiversidade que assim acarretamos?
Em suma: será que, se quisermos evitar o exacerbamento da catástrofe ecológica que hoje vivenciamos, não teremos que perceber a animalidade como algo englobado na esfera da ética? Não temos virtudes a exercer e vícios a evitar também em nosso trato com outros seres sencientes?
Enfim: será que a preocupação ética não deve manifestar-se não somente em nossas relações inter-pessoais (ou seja, inter-humanas), mas também em nosso trato com a vida em geral, em quaisquer de suas manifestações específicas? Será que só a Biophilia – para usar a expressão muito feliz de Björk – irá salvar-nos de seguirmos nesta sina de sermos uma catástrofe para o equilíbrio sustentável dos ecossistemas planetários?
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II. COMER ANIMAIS, DE J. SAFRAN FOER
Tendo a gostar dos livros que são, ao invés de papagaios de dogmas, expansores de horizontes. Livros que ampliam nosso estoque de indagações e espantos. Há quem procure nos livros as verdades absolutas, as certezas indubitáveis, as receitas infalíveis. Mas acho antipático qualquer livro que pretenda ter todas as respostas e soluções, pontificadas do alto de torres-de-marfim e de púlpitos-do-privilégio. Animo-me bem mais na leitura quando sinto, conforme avanço pelas páginas, a excitação do contato com uma inteligência audaz, que quer romper as grades da gaiola e alçar vôo rumo ao proibido, ao inaudito, ao pensamento livre, para além dos tabus e dos medos.
Gosto de palavras que geram uma proliferação de inquietações inéditas, empurrando-nos assim no rumo da auto-transformação e do auto-questionamento. “Convicções são prisões”, dizia o autor do Anticristo, que preferia a companhia de espíritos livres dionisíacos a padres pregadores de camelismos crucificantes! Nietzschianamente, prossigamos, botando fé – se é preciso ter alguma! – na aposta de que é perguntando que avançamos. Pra bem viver é preciso, dia a dia, ir assassinando certezas ossificadas e ir em frente sob o influxo da dúvida peregrinante.
Jonathan Safran Foer (1977 – ), escritor norte-americano, autor dos romances “Tudo Se Ilumina” (Everything Is Illuminated, 2002) e “Extremamente Alto e Incrivelmente Perto” (Extremely Loud and Incredibly Close, 2005), é o responsável por um dos mais extraordinários livros de não-ficção publicados neste século, o impactante e contundente “Comer Animais” (Eating Animals, 2009, publicado no Brasil pela Editora Rocco em 2010; pode ser adquirido na Livraria Cultura [http://bit.ly/13LRfiZ] ou na Estante Virtual [http://bit.ly/1zoFfMT].).
O livro virou um best-seller internacional, celebrado por seu poder de revolucionar as ideias do leitor sobre o consumo de carne, em especial aquela produzida pelo sistema hoje hegemônico do factory farming (pecuária industrial).
A atriz Natalie Portman, que converteu-se ao vegetarianismo após lê-lo, declarou: “Este livro lembrou-me que aquilo que escolhemos comer define não somente nossa fisicalidade, como também nossa humanidade.” (“The book reminded me that what we choose to eat defines not only our physicality, but also our humanity.” )
Já J. M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, considera o livro tão persuasivo e convincente em sua descrição dos “horrores do factory farming”, que afirma o seguinte: “Se alguém continuar a consumir os produtos da indústria depois de ler o livro de Foer poderá dizer-se que não tem coração, ou que é impermeável a razão, ou ambos.”
Comer Animais é uma destas obras que vale a pena ser lida, em primeiro lugar, pelas questões que aí são formuladas. Não é que eu queira desdenhar das respostas que Jonathan Safran Foer também procura compartilhar, após uma pesquisa minuciosa e uma investigação jornalística apurada. Mas o tom questionativo é um dos méritos maiores da obra.
O que não impede que Comer Animais seja uma obra com alto potencial de “converter” carnívoros e omnívoros a uma nova dieta. É um livro de impacto social como poucos que tenham sido escritos nos últimos anos (o que o coloca na companhia de autores como Naomi Klein, Arundhati Roy, Raj Patel [Stuffed and Starved], Eric Schlosser [Fast Food Nation]…).
A eficácia da obra de Safran Foer não está em nenhum tom pregatório, mas muito mais numa expansão da consciência do leitor que o livro instiga e possibilita, e isso através de sua narrativa interrogativa e problematizante. Um livro saboroso justamente por não ser nada dogmático.
Há toda uma tradição, em especial na literatura norte-americana de raízes judaicas, de reflexão aprofundada sobre a questão dos direitos animais e das justas relações que os humanos podem estabelecer com estes outros que junto conosco constituem a Teia da Vida: Isaac Bashevis Singer, por exemplo, que assim como Coetzee foi laureado com o Nobel de literatura, pôs sua pena penetrante e apurada em sintonia com a gigantesca questão: os humanos tratam os animais de maneira similar àquela que o nazifascismo dispensava àqueles aprisionados nos campos-de-concentração? A conclusão, decerto sinistra, que Isaac B. Singer tira é que sim: para os animais, os humanos são todos azistas e a existência nas fábricas-da-carne é um “Eterno Treblinka”.
“Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve de ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada e escaldada em água quente. O homem não dava um segundo de pensamento ao fato de que o porco era feito do mesmo material e que este tinha de pagar com sofrimento e morte para que ele pudesse saborear sua carne. Pensei mais uma vez que, quando se trata de animais, todo homem é um nazista.” – I. B. SINGER
Comer Animais não é proselitismo panfletário em prol da causa do vegetarianismo, mas muito mais um livro que busca ir além dos tabus, das repressões, das ignorâncias voluntárias, no sentido de ampliar a extensão e a magnitude do que merece entrar na esfera da consideração ética.
Não é à toa que a maior organização global de defesa dos direitos animais traz encodado em seu nome-de-batismo a palavra ética: a PETA (People for the Ethical Treatmente of Animals), com mais de 2 milhões de membros mundo afora, é um dos temas que Safran Foer explora nas páginas deste seu romanceado tratado de Ética Prática (para lembrar também o título da obra de Peter Singer, uma das figuras contemporâneas de maior destaque na filosofagem sobre as relações dos humanos com animais). A PETA – “nenhuma organização mete mais medo na indústria da carne e seus aliados do que ela” – aparece aos olhos de Safran Foer como defensora de “valores que fomos covardes ou esquecidos demais para defendermos” (p. 71).
Já dá pra perceber o quanto o fio desta narrativa, não-fictícia e com altos elementos autobiográficos, consiste numa sondagem sobre valores éticos, sendo que a pergunta que não quer calar, e que repete-se em diferentes versões através do livro, é a seguinte: os seres humanos possuem ou não deveres éticos em suas relações com os animais não-humanos? No trato com cachorros, vacas, gatos, galinhas, esquilos, baratas, baleias, coelhos, estes primatas que chamam a si mesmos de homo sapiens tem direito ao vale-tudo?
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DILEMAS DA PATERNIDADE
Observando seu filho recém-nascido sugando o leite dos seios da mãe, Jonathan sente-se estarrecido: “Observei-o com um espanto [awe] sem precedentes na minha vida”. É que o rebento, recém-emergido do útero, lançado a uma situação radicalmente nova, trazia consigo a capacidade de nutrir-se já “encodada” em seu organismo, de modo similar aos batimentos de seu coraçãozinho ou as expansões e contrações de seus pulmões pequeninos.
Tudo isso independia da razão e do controle egóico para desenrolar-se; sem precisar usar a sua ainda incipiente e subdesenvolvida razão, ainda desconhecendo completamente a linguagem verbal, sem necessidade de ser ensinado ou condicionado, o bebê já expressava sua existência através de sístoles e diástoles, inspirações e expirações, fomes e lágrimas . E é de se suspeitar que já era assim que agiam as crianças humanas na idade da Pedra, e que assim mamavam os filhos dos homens-e-mulheres-das-cavernas…
Neste seu primeiro livro não-fictício, escrito após dois romances de sucesso (Tudo se Ilumina e Extremamente Alto e Incrivelmente Perto), Safran Foer deixa claro que seu desejo de produzir um livro sobre Comer Animais é inseparável dos dilemas vinculados à experiência, para ele inédita, da paternidade. Os dilemas que ele enfrenta são: Quero que meu filho seja carnívoro? Vou esconder dele todo o sistema de produção da carne para não escandalizá-lo? Ou melhor é informá-lo, desde cedo, que aquela rodela de carne que vem dentro do Big Mac um dia foi parte de uma vaca viva e senciente, e que aqueles Nuggets são na verdade pedacinhos de cadáver de um frango que um dia esteve entre os vivos?
O charme maior do livro, segundo o meu paladar, está no tom interrogativo que o autor mobiliza para convidar-nos à reflexão não somente sobre escolhas ou preferências individuais, mas também sobre os (des)caminhos civilizacionais hegemônicos, que ele contrapõem a melhor vias alternativas.
Safran Foer envolve-se no debate sobre o sofrimento dos animais e sobre a inegável capacidade que possuem para sentir dor, medo, desconforto, mas não fica estacionado no discurso sentimental (ou mesmo sentimentalóide, como acusam os detratores do vegetarianismo).
Alguns tem a tendência a desacreditar ou mesmo desprezar quaisquer discursos que tenham um sabor de pregação moralista sobre a necessidade imprescindível de valores como compaixão e empatia. O argumento de Safran Foer, escapando ao sentimentalismo e também à brutalidade, é muito mais persuasivo e inclui amplas considerações do autor sobre o meio-ambiente em nossa era – o Antropoceno – que progride a passos largos no rumo das catastróficas disrupções climáticas e das mega migrações de refugiados de desastres ecológicos de que nosso futuro, segundo confiáveis prognósticos, estará repleto.
“Most people agree that the environment matters. Whether or not you are in favor of offshore oil drilling, whether or not you ‘believe’ in global warming, whether you defend your Hummer or live off the grid, you recognize that the air you breathe and the water you drink are important. And that they will be important to your children and grandchildren. Even those who continue to deny that the environment is in peril would agree that it would be bad if it were.
In the U.S.A., farmed animals represent more than 99% of all animals with whom humans directly interact. In terms of our effect on the ‘animal world’ – whether it’s the suffering of animals or issues of biodiversity and the interdependence of species that evolution spent millions of years bringing into this livable balance – nothing comes close to having the impact of our dietary choices. (…) Very often, those who express concern about (or even an interest in) the conditions in which farmed animals are raised are disregarded as sentimentalists. But it’s worth taking a step back to ask who is the sentimentalist and who is the realist.
Is arguing that a sentiment of compassion should be given greater value than a cheaper burger (or having a burger at all) an expression of emotion and impulse or an engagement with reality and our moral intuitions? Two friends are ordering lunch. One says, ‘I’m in the mood for a burger’, and orders it. The other says, ‘I’m in the mood for a burger’, but remembers that there are things more important to him than what he is in the mood for at any given moment, and orders something else. Who is the sentimentalist?”
(p. 74)
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FILMES DE TERROR
Fãs de filmes de terror, eis um conselho: se vocês querem assistir algo extremamente terrificante, procurem documentários sobre a produção de carne. São imagens horrendas e explícitas registrando a tortura da carne, a agonia dolorida dos assassinados, algo que é capaz de tirar o apetite diante da janta caso esta contenha um bife.
“We know that if someone offers to show us a film on how our meat is produced, it will be a horror film. We perhaps know more than we care to admit, keeping it down in the dark places of our memory – disavowed. When we eat factory-farmed mead we live, literally, on tortured flesh. Increasingly, that tortured flesh is becoming our own.” – SAFRAN FOER, pg. 143
Assistindo aos documentários sobre este mundo-tabu que em massa nós nos recusamos a enxergar, apesar de seu peso gigantesco na realidade concreta de nosso sistema de produção e consumo de alimentoss, a gente chega facilmente à conclusão de que a realidade supera em horrores e atrocidades aquilo pode imaginar a ficção. As imagens filmadas dentro de abatedouros rivalizam em potencial de choque com qualquer vídeo da série Faces da Morte. E não são poucos que sentem-se impelidos ao vegetarianismo após assistirem Earthlings ou Cowspiracy.
Em Workingman’s Death, por exemplo, filme que expõe alguns dos piores trampos que existem no planeta, somos apresentados a um mercadão da carne em Port Harcourt, na Nigéria. Talvez não haja nenhum setor do Inferno, tal qual imaginado por Dante na Divina Comédia, que chegue aos pés deste inferno-da-vida-real que as câmeras registraram por ali:
Workingman’s Death, um filme de Michael Glawogger
No mundo dito desenvolvido, a produção da carne está bem mais protegida dos olhares públicos, é claro: arame farpado, alarmes hi-tech, guardas armados, cercas elétricas, protegem as factory farms onde bilhões de animais padecem de uma existência à la Auschwitz. A situação na Nigéria que o filme nos desvela tem ao menos uma vantagem: ali faz-se de modo escancarado, à céu aberto, à luz do dia, aquilo que no chamado 1º Mundo ocorre às escuras e longe do conhecimento dos consumidores.
A célebre frase de Paul McCartney – “se os matadouros tivessem paredes de vidro, todo mundo se tornaria vegetariano” – recebe como que um comentário irônico e uma problematização involuntária através da revelação da realidade em Port Harcourt: ali, não há parede alguma delimitando o espaço da matança; não há pudores ou hipocrisias, mas a exibição explícita de procedimentos brutais.
De modo mais leve, jocoso e irônico, Chico Buarque também tematizou a relação entre humanos e bichos em Fazenda Modelo, novela sagaz onde um dos maiores artistas brasileiros satiriza os comportamentos de Juvenal em seu trato com vacas e gentes:
“Juvenal constatou que é mais dispendioso transportar alimentos para os animais no pasto do que abrigá-los e engordá-los em recinto fechado. Elas, as vacas, não chegaram a manifestar suas aflições e anseios. (…) Desmamar bezerro não é nada, duro é desfilhar a mãe. Ela sente calafrios e decide aquecer o inocente, ensaia trazê-lo de volta ao ventre… Juvenal custou a convencê-las que aquela abundância de leite não convinha às crianças, era artigo de exportação. (…) Depois erigiu-se um monumento, uma estátua que era uma singela homenagem ao boi trabalhador da Fazenda Modelo, vejam. “Esse instrumento dócil que nos deu a divina providência, oferecendo-nos as suas energias e faculdades, essa ferramenta maleável que segue instintivamente suportando, com uma paciência e submissão admiráveis, as fadigas e privações que lhe impomos…”
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA,
Fazenda Modelo – Novela Pecuária
Ed. Civilização Brasileira.
4ª edição, Rio de Janeiro, 1975.
Pgs. 43 – 52 – 79.
Assista também:
[youtube id=http://youtu.be/aeJfY5CXTM0]
[youtube id=http://youtu.be/uUHIrTV8fMA]
[youtube http://www.youtube.com/watch?v=u7LBPHtOBnk]
[youtube http://www.youtube.com/watch?v=vPtrekRyTMA]
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IV. KAFKA DIANTE DO AQUÁRIO E A VERGONHA POR SER HUMANO
Em uma visita ao zoológico de Berlim, Franz Kafka (1883-1924) conversa com os peixes no aquário. Nessa época, o autor d’A Metamorfose já havia aderido à dieta vegetariana e foi flagrado por seu camarada Max Brod endereçando aos peixes uma frase destinada à fama duradoura (e que hoje estampa camisetas e posters de ativistas dos direitos animais): “Agora posso olhar para vocês em paz, eu parei de comer vocês.” (BROD, Max. Franz Kafka. New York: Schocken, 1947, pg. 74)
Implícito no dito kafkiano está a problemática da culpa e da vergonha, fardos de que Kafka se sente aliviado desde que abandonou a dieta carnívora: é como se ele se dirigisse aos peixes como alguém que cessou de ser o inimigo, o predador, o devorador cruento. O que é extraordinário na atitude kafkiana, como destaca Jonathan Safran Foer, é a capacidade do escritor de incluir os animais na esfera de suas preocupações éticas: englobados no âmbito das criaturas que merecem ser lembradas e respeitadas, os peixes sob o olhar de Kafka readquirem seu status de viventes-com-direitos e diante dos quais pode-se enrubescer de vergonha, apesar de tal atitude ser incomum e rara.
A vergonha é “crucial na leitura que Walter Benjamin faz de Kafka”, destaca Safran Foer, uma “vergonha que é ao mesmo tempo íntima – sentida nas profundezas de nossas interioridades – e social – algo que sentimos estritamente diante dos outros. Para Kafka, a vergonha é uma resposta e uma responsabilidade diante de outros invisíveis – diante da ‘desconhecida família’, para usar uma frase dos Diários. É a experiência fundadora da ética. (…) A vergonha é aquilo que sentimos quando quase completamente – mas não completamente – esquecemos expectativas sociais e obrigações em relação aos outros em favor de nossa gratificação imediata.” (SAFRAN FOER, pg. 36)
Quando Kafka declara que agora pode olhar os animais em paz, aí está pressuposto que antes olhava-os atormentado pela vergonha, angustiado por sua pertença ao humano. Pois a humanidade, em suas relações com o mundo animal, frequentemente age com indiferença completa em relação aos sofrimentos infligidos a outras espécies. O que é vergonhoso na atitude de muitos humanos é este esquecimento voluntário, esta indiferença cultivada, esta crueldade de empatia nula diante dos animais, que são costumeiramente excluídos da esfera das preocupações éticas humanas, tratados como se nada sentissem, como se nada sofressem, como se não passassem de coisas ou mercadorias.
A noção de que peixes são criaturas assassináveis e devoráveis pelos humanos também recebe um comentário irônico nos versos de Kurt Cobain, na canção que encerra Nevermind: “It’s ok to eat fish cause they don’t have any feelings”.
Safran Foer, que como Kafka possui raízes judaicas, confessa em vários trechos de seu livro uma vergonha por ser humano que toma conta de sua afetividade conforme ele testemunha as realidades horrificantes da factory farming e da pesca industrial.
Talvez o grande escritor se caracterize por uma aptidão para identificar-se com o que ele não é, inclusive com os animais. Talvez o gênio artístico seja inseparável da aptidão de praticar um devir-outro que aplica-se não só à alteridade humana, mas à alteridade em sentido mais amplo, englobando algo que vai muito além do que é humano, demasiado humano.
Considero elogio suficiente dizer que nas páginas de Jonathan Safran Foer, Franz Kafka e Isaac Bashevis Singer – para citar apenas 3 de meus escritores de estimação! – encontramos alguém que é capaz de pôr-se na pele de um peixe e imaginar o que significa vivenciar a experiência de ser pescado. Podemos ser muito enriquecido por esta experiência de tentar enxergar a perspectiva do outro: isso pode transformar o humano através do desenvolvimento de concepções com maior conteúdo de empatia e sabedoria do que atualmente em voga.
No documentário We Feed The World, por exemplo, somos apresentados a imagens de peixes pescados e com os olhos desintegrados: eles vivem em águas profundas e, quando são capturados pelas redes e puxados para a superfície, a diferença de pressão é tamanha que seus globos oculares explodem. Imagine a sensação, ponha-se na pele destes outros. E se estes olhos explodidos fossem os teus? E se a vida, ceifada assim de súbito, fosse a tua?
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Leia também:
Publicado em: 07/02/15
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Obrigada, pelo texto bem escrito e cheio de referencias que irão me ajudar e muito na minha pesquisa.
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andreia
Comentou em 15/08/16